Discussão:Hans-Joachim Koellreutter
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Duas Russas, entre três Américas e um prêmio
Compositor reconstrói paisagens sonoras de velhas dicotomias brasileiras e ganha prêmio inter-americano.
O compositor cearense Liduíno Pitombeira ganhou o prêmio Inter-Americano de Música 2005, uma competição trienal criada em 1948 pela fraternidade Sigma Alpha Iota que envolve a participação de compositores residentes na América do Norte, do Sul e Central. O resultado saiu no dia 30/08, quarta-feira, via e-mail. A entrega oficial do prêmio vai ocorrer durante a Convenção Nacional da fraternidade, em Orlando, Florida, em fins de julho de 2006.
Pitombeira concorreu com um quinteto para metais, Brazilian Landscapes N. 2. A obra contém dois movimentos de características contrastantes entre si, Santo Antonio e Ingá. Os nomes são uma homenagem aos locais de nascimento da mãe e do pai do compositor, respectivamente. Pelas normas do concurso, a obra não pode ser gravada nem executada até a data da premiação, mas quem conhece o estilo do compositor e a diversidade de “atmosfera cultural” daqueles dois lugarejos cearenses, pode ter uma idéia da instigação auditiva presente na obra.
Como parte do prêmio, o músico, natural de Russas, terá sua peça publicada e o registro dos direitos autorais pago pela C. F. Peters Corporation, editora que publica nomes como Schoenberg, Stravinski, Satie, Charles Ives, Joaquin Rodrigo, John Cage, dentre outros. Em 2003, Pitombeira foi eleito o "compositor do ano" pelo Music Teachers National Association, por sua Brazilian Landscapes N. 1, e a N. 3 foi estreada na Grécia no ano passado. A série completa é constituída de seis peças.
Pitombeira tem um catálogo de 104 obras, dentre as quais duas sinfonias, uma opera, três concertos e diversas formações instrumentais e corais. No Ceará, foi um dos fundadores do grupo camerístico Syntagma em 1986, para o qual continua compondo, e também atuou como professor da Universidade Estadual do Ceará. Reside nos EUA desde 1998, é Ph.D. em Composição pela Universidade de Louisiana, onde leciona atualmente como professor visitante. O prêmio veio como uma boa surpresa em meio ao clima intempestivo do furacão que por lá atravessou. A entrevista a seguir foi realizada em três sessões, nos dias 8, 9 e 10 deste mês, por meio de webchat e ligação telefônica via Internet.
Gostaria que você falasse um pouco sobre o estilo, os materiais e a forma da Brazilian Landscapes N. 2, já que não é possível ouvi-la até a premiação.
Esta peça surgiu a partir de um esboço de sonata para saxofone e piano que eu mantinha no meu banco de dados composicional. Sempre mantenho nesse banco uma média de trinta obras inacabadas ou que foram retiradas do catálogo para serem reconstruídas, como a série Zodíaco, que está sendo toda reciclada. O elemento gerador desta sonata era um acorde menor com sétima maior e sexta no baixo, o qual, após ser distribuído temporalmente, se constituía na primeira linha melódica da peça. Este elemento inicial se manteve depois que a sonata se transformou no segundo movimento do quinteto de metais “Brazilian Landscapes No.2” e ficou funcionando como o refrão de um rondó, que é a forma aproximada deste movimento. Depois disso eu adicionei um primeiro movimento lento que contrastasse com a energia rítmica do segundo movimento. Este primeiro movimento tem uma forma livre, como uma fantasia, e tem como idéia estrutural tríades maiores e menores encadeadas sem rigor sintático, não-funcional. Antes do primeiro movimento ser adicionado, eu já tinha mais ou menos uma idéia da metáfora programática da obra, por conta de sua inserção na série “Brazilian Landscapes”.
Diferentemente de uma outra série nacionalista que estou compondo, as “Serestas”, que se propõem a ser um “catálogo” de danças e gêneros musicais brasileiros, a série “Brazilian Landscapes” enfoca mais impressões e referências extra-musicais brasileiras e é, digamos, mais voltada à “exportação” deste objeto imaterial, daí o título em língua estrangeira. Assim sendo, na “Brazilian Landscapes No.1”, eu fiz referência a três compositores brasileiros: Egberto Gismonti, Antônio Calado e Camargo Guarnieri. Nessa segunda peça da série, eu fiz referências familiares, ao utilizar como títulos os nomes dos lugarejos de nascimento de meus pais. São locais bem diferentes, atmosfericamente e populacionalmente falando. Em Ingá, moram remanescentes de tribos que habitaram o Vale do Jaguaribe, principalmente da tribo Araribu, que antes habitava o local onde é, hoje em dia, o município sede de Russas, até que foram afastados pela "civilização" quando chegou o Forte São Bernardo das Russas. Desta forma, o povo de Ingá é mais relaxado, mais "filósofo". Minha avó, mãe do meu pai, fumava cachimbo e sentava naquela famosa posição tradicional indígena, de cócoras. Do outro lado, indo pra Fortaleza, fica Santo Antonio de Russas que foi estabelecido, ao que parece, pelo meu bisavô Antonio Jose Rodrigues Pitombeira. Ainda estão lá a capela, a casa grande e o que restou da senzala. Ou seja, o pessoal de lá era a "civilização". Esse é o lado da minha mãe. Por isso, o primeiro movimento é meio austero e os metais em certa hora lembram órgão, sem vibrato.
Não sei como rotular o estilo da peça, mas tenho simpatia filosófica pelo pós-modernismo, como foi definido por Jonathan Kramer num artigo para a revista “Indiana Theory Review”, em 1996: o pós-modernismo não considera válidas as barreiras de tempo, espaço e cultura que dividem a música, nem respeita os dogmas de direcionalidade e unidade estrutural. Portanto, minhas obras nacionalistas resultam de uma mistura livre de estruturas tonais, atonais e modais e nascem quase sempre sem um planejamento intelectual. Uma análise mais profunda da obra, a qual eu não fiz nem pretendo fazer, por enquanto, pode revelar com mais clareza os sotaques nacionalistas e as influências mais universais.
No ano passado, o MTNA lhe concedeu o prêmio de "compositor do ano" pela BL n. 1. Em geral, a série vem agradando bastante o público, não somente nos EUA. A que você atribuiria esta aceitação? Você acredita que o conceito desenvolvido na série, essa idéia de apresentar o Brasil, continua constituindo um diferencial na prática?
Na verdade, o público não tem nenhuma participação nesse processo de escolha. A não ser que se defina público como as pessoas que tiveram acesso à obra, os jurados, enfim, pouquíssimas pessoas. Aliás, este é um ponto de constante polêmica nos círculos composicionais que tenho vivenciado na prática: o público é importante? pode uma obra de arte viver no vácuo sustentada e apreciada única e exclusivamente por uma elite acadêmica e pelo dinheiro das universidades? A resposta é clara para muitos compositores: uma obra de arte é expressão pessoal e com absoluto compromisso com o novo e, portanto, mesmo sendo muitas vezes produzida a partir de arquétipos da vida comum, é algo a ser apreciado somente pelo cérebro e não pelos sentidos. Assim sendo, a música, antes de ser um fenômeno auditivo, é uma rede de estruturas gestálticas e gráficas. Uma boa explicação sobre a obra basta, o som é o de menos. Esta tendência não é algo criado pelos modernistas do século XX, mas é a revivificação de um conceito que tem suas bases na escola pitagórica: os sentidos são impuros, só a mente pode julgar e apreciar a beleza. Mas, como Pitágoras teve um opositor, Anaximandro, que pensava exatamente o contrário, ou seja, a mente é impura e os sentidos são uma referência mais segura, assim também existe uma corrente contrária a este movimento hiper-intelectualista que se manteve viva até hoje. Para identificar os compositores desta linha pitagórica, basta buscar em qualquer compêndio de história da música contemporânea em que certos compositores são deixados de lado: Poulenc, Prokofiev, Milhaud, Villa-Lobos, Guarnieri. Eu gosto de beber de ambas as fontes. Voltando ao ponto sobre o público, antes de voltar à resposta, muitos compositores, em discussões que tenho participado, definem o público simplesmente como eles mesmos, numa mistura de Narciso com Luix XIV: o público sou eu. E assim fica resolvido o dilema: se o público sou eu e eu gosto da peça, o sucesso é de 100%. Polêmica resolvida.
Agora, falando sobre “Brazilian Landscapes No.1” e porque eu acho que ela agradou à academia americana. Existe aqui nos Estados Unidos, pelo que tenho observado, duas febres paradoxais que circulam no corpo acadêmico: uma que se agarra com unhas e dentes ao modernismo ultra-intelectual e dissonante de Elliot Carter e Milton Babbitt e outra que cultua o que se chama de “world music” como parte de uma manifestação pós-moderna, que é o neo-romantismo e o minimalismo. “Brazilian Landscapes No.1” tem tipos paradoxais de sonoridades reunidos numa unica peça: modalismo, dodecafonismo livre, tonalismo, atonalismo, notação gráfica, massas sonoras, efeitos e exploração timbrística etc, e com uma referência extra ao Brasil, que é muito respeitado aqui, do ponto de vista musical. O Camargo Guarnieri recebeu da OEA, no final de sua vida, o prêmio “Gabriela Mistral” de maior compositor contemporâneo das três Américas. Ou seja, acho que essa referência ao Brasil foi um fator importante.
Uma preferência pós-moderna por parte dos jurados também foi importante na hora da escolha. Além disso, a BL No.1 agrada muito aos músicos e, como consequência, eles produzem um resultado sonoro bastante positivo. Mesmo os trechos bem angulares, a que muitos músicos resistem, são inseridos em contextos onde o intérprete pode mostrar sua voz, e isto é também um fator que o liga a obra e produz mais qualidade interpretativa. Voltando ao conceito de público, para fechar, acho que BL No.1, pela variedade sonora que apresenta, consegue atingir um público maior: compositor, intérprete, e por vezes audiência. A peça foi gravada pelo selo Magni e está disponível no mercado estadunidense desde outubro de 2004 e tem sido executada no Brasil pelo Jacob Herzog Trio desde essa época.
Mas a BL N. 3 foi executada na Grécia, não?
Sim. Na época, eu estava terminando o doutorado e meu orientador, Dinos Constantinides, que é grego, levou diversas peças de alunos seus para serem executadas pela Orquestra do Conservatório Synchrono de Atenas. Ele foi o regente e a flauta foi executada pela flautista americana Sarah Beth-Hanson. A peça também foi executada em janeiro de 2005 nos Estados Unidos, com a Louisiana Sinfonietta, sob a regência dele novamente, e com a mesma flautista. Estou estudando a possibilidade de uma execução no Brasil, em Goiânia, mas ainda não tem data definida.
A Brazilian Landscapes N. 3 é bem diferente das BL anteriores. Os dois movimentos são conectados sem pausa e a fonte de inspiração é, pasme, a novela “Éramos Seis”, do romance de Maria José Duprée, que foi exibida na Tupi entre 6 de junho de 31 de dezembro de 1977, quando eu tinha 15 anos. Os grandes atores, entre eles Gianfrancesco Guarnieri e Nicete Bruno, e a trilha sonora, devem ter me marcado de alguma forma. A Banda, de Chico Buarque, era uma das canções, e, além disso, eu fiquei com o som da abertura na minha cabeça que foi se tornando indefinido com o passar do tempo e, depois, intuitivamente filtrado pelas minhas experiências musicais, se transformou no tema inicial da obra.
Fale um pouco sobre a sua formação musical e humanística no Ceará.
Minha base musical vem da música popular e instrumental. É uma das poucas portas abertas que se tem, principalmente no Ceará, quando não se é rico ou não se teve a sorte de obter um patrocínio externo, desses que se dão a potenciais nascentes. No caso do Ceará a situação é um pouco mais grave porque não existe ainda uma estrutura, ligada ou não às instituicões acadêmicas, de produção e consumo de música de concerto e assim sendo, o êxodo dos artistas é quase inevitável.
Excetuando-se a iniciação ao violão, com o Paulo Santiago, ainda em Russas, por volta de 1974, fui auto-didata até 1985, quando iniciei estudos de harmonia com os compositores Tarcísio José de Lima e Vanda Ribeiro Costa, que me orientou até 1991. Paralelamente, eu cursava o bacharelado em música na UECE e participava do Syntagma, o qual ajudei a fundar em 1986. Estudos mais intensos nas áreas de contraponto, forma, estética, orquestração, harmonia e composição vieram quando passei a estudar com o compositor José Alberto Kaplan, compositor e pianista argentino radicado na Paraíba. Estudei de 1991 a 1998 com o Professor Kaplan. O duro era enfrentar 20 horas de ônibus, ida e volta, para ter uma aula mensal.
Foi no meio dessa rotina dura de Coelce, aonde eu trabalhava das 8:00 às 18:00 de segunda a sexta, curso noturno da UECE, primeiro como aluno, depois como professor, e o Syntagma, que compus minhas primeiras trinta peças, as quais me abriram a porta para um mestrado no exterior, graças a uma bolsa de ensino que recebi da Louisiana State University no segundo semestre de 1998. A intenção inicial era ter ficado na UECE, passando de substituto à efetivo através de um concurso que foi oferecido em 1998, mas as autoridades de lá não acharam que meu currículo era suficientemente bom para pertencer aos quadros do curso de música, então parti. Cursei o mestrado e o doutorado em composição com o “minor” em teoria de 1998 a 2004. Como parte do meu contrato de bolsista, iniciei atividades docentes na Louisiana State University em 2001, ministrando aulas de composição e monitorando as sessões de treinamento auditivo dos cursos iniciais de teoria. Em 2003, já com o status de ABD, “all but dissertation”, passei a ministrar o curso de técnicas composicionais contemporâneas para os alunos de mestrado e doutorado. Com o término do doutorado, no primeiro semestre de 2004, seguiu-se a contratação como instrutor e, agora, como professor assistente visitante.
Minha formação humanística foi ainda mais irregular: não tive acesso fácil a áreas importantes como filosofia, antropologia, semiótica e literatura. A formação que tive paralelamente à musical foi de caráter tecnológico, em Eletricidade e Eletrônica, cursado na antiga Escola Técnica Federal, atual CEFET-CE, e confesso que isto me ajudou bastante quando tive os primeiros contatos com a música eletroacústica. Entre os planos futuros, com relação à minha formação, está a idéia de potencializar um contato mais profundo com disciplinas humanísticas que possam ampliar minha visão musical como teórico e servir de base intelectual para minha produção composicional.
Que dificuldades principais você atravessou no processo de mudança para os EUA?
A língua é a grande dificuldade inicial, especialmente quando este contato se dá depois dos trinta anos de idade, como foi o meu caso. A língua inglesa, pela sua falta total de foneticidade, é uma barreira imensa à comunicação verbal para alguém acostumado a uma língua quase fonética como o português. Eu já tinha certa familiaridade com o inglês escrito, mas este é, na minha visão, totalmente desconectado do inglês oral. É como se fossem duas línguas numa só e, se as línguas são instrumentos de filtro e poder das elites, imagine a complicação quando este filtro é duplo. Embora a dificuldade se amplie mais ainda quando se depende desta língua para frequentar os cursos de uma universidade, compreendo que a ênfase positivista do sistema educacional americano facilita a adaptação inicial de certo modo, porque não se discutem muito as causas e as consequências dos fenômenos, com medo talvez que a coisa desemboque em Adorno, Sartre, ou mesmo no “perigoso” Marx. Deixei as disciplinas mais filosóficas e com vocação polêmica para o final do curso, quando já tinha um domínio melhor da língua.
Outra dificuldade é a financeira. Como eu vim sem nenhum apoio do Brasil, tive que gerenciar bem os recursos da bolsa e dos trabalhos realizados na universidade. Como bolsista, só se pode trabalhar 20 horas semanais, então a entrada de dinheiro é mínima, e os recursos se esvaem rapidamente com coisas básicas que no Brasil são muito mais baratas e de melhor qualidade, como alimentação, por exemplo.
A cultura e as relações também se constituem numa dificuldade que muitas vezes faz o processo andar mais lento. Tenho o exemplo de dois alunos meus de composição que eram membros do coral da escola. Estes dois indivíduos cantavam nesse mesmo coral, no mesmo naipe de tenor, já havia dois anos e, um dia, um deles precisou de carona para ir a um concerto. Ambos estavam na minha sala e, por incrível que pareça, não se conheciam. Eu fiz a apresentação e ficou resolvido o problema do transporte. Uma cena dessas é totalmente impossível de acontecer no Brasil. Imagine se existe algum coral no Brasil, em que os membros não se conhecem. Transferindo isso para o dia-a-dia, dá para se ter uma idéia do nível de solidão por que se passa aqui. A solução é se organizar, principalmente com relação a prazos e regras, as duas palavrinhas fundamentais da cultura americana, porque as informações nunca virão por meio de conversas ou comentários, mas sempre através de um calendário ou de um “website”.
Uma dificuldade extra no meu caso é com relação à saúde e alimentação. Como sou adepto de uma cultura mais alternativa neste sentido, tive que improvisar bastante porque os sistemas holísticos, homeopatia, vegetarianismo etc, ainda são muito incipientes, principalmente no estado de Louisiana.
Que críticas você apontaria, a partir de suas experiências pessoais, no sentido de melhorar o ensino de composição nos EUA? E no Brasil?
O estudo da composição só se firma em bases sólidas quando existe realimentação de conhecimento, ou seja, quando o compositor ouve o resultado de sua produção, ouve os comentários dos intérpretes, e aplica estes resultados e estas sugestões diretamente no processo composicional. Isto envolve, principalmente, o aspecto orquestração, com relação às combinações de instrumentos. Como se pode escrever um dueto para oboé e fagote quando não se tem uma clara idéia mental dos registros destes instrumentos, de como suas sonoridades se equilibram relativamente? Este tipo de enfoque é deficiente tanto nos Estados Unidos como no Brasil por conta dos custos elevados com cachês, especialmente no que diz respeito aos músicos de cordas. Ao que parece, este era um ponto forte na educação composicional dos países do leste europeu há alguns anos, como a Polônia, por exemplo: os compositores tinham um acesso mais imediato aos resultados sonoros de suas obras.
Um outro aspecto importante é o contato direto do compositor com os diversos instrumentos, como instrumentista. Esta vivência facilita o trabalho do compositor no momento de expressar idiomaticamente suas idéias com relação a determinado instrumento, e isto evita certos absurdos que só funcionam no papel, mas que podem ter uma solução mais exeqüível, mais fisicamente lógica, e que cause menos sofrimento ao intérprete. Parece que há alguns currículos no Brasil que abordam este problema, como o do Rio Grande do Sul, por exemplo. Nos Estados Unidos, também é possível encontrar escolas de composição com esse enfoque.
Um outro ponto importante é o contato do compositor com a área tecnológica e com as ciências exatas. Diversos aspectos da música atual, como teoria dos conjuntos, música estocástica, música eletroacústica, composição espectral, acústica, precisam que o compositor se sinta confortável com equações e teoremas, não necessariamente como um profundo conhecedor da área, mas como um usuário de processos que são muitas vezes auxiliares à composição.
Complemento estes três tópicos com a necessidade de se reforçar o estudo da percepção, da improvisação, do contato constante com um instrumento, e de se criar um gosto de pesquisa por disciplinas humanísticas que, se não atuam diretamente no ato composicional, formam a longo e médio uma consciência artística mais madura. A música, que nos sistemas educacionais medievais era classificada com uma disciplina do quadrivium - aritmética, geometria, astronomia e música – passa, a partir das conexões com a retórica, a partir do barroco, a integrar também o tradicional trivium - gramática, retórica e lógica. Desta forma, pode-se abordar o fenômeno composicional partindo de ambos os lados: um mais matemático, outro mais literário. Um bom curso de composição permite o acesso do aluno às duas áreas.
Mas, na prática, como professor, que tipo de abordagem você considera capaz de atingir esse ideal? Em que aspectos os desafios que você encontra enquanto professor são parecidos e em quais são diferentes, nos EUA e no Brasil?
Dois fatores podem alterar esta situação na prática: recursos financeiros e mudança no currículo. Com recursos financeiros, as bibliotecas podem ser melhor equipadas, especialmente com partituras e gravações, grupos de instrumentistas podem ser contratados e melhor remunerados para proporcionar as retroalimentações necessárias aos compositores, e pesquisadores de outras áreas, humanas e tecnológicas, podem ser inseridos num contexto de maior inter-disciplinaridade, o que favoreceria uma maior integração da composição com estas áreas afins. A mudança curricular seria uma consequência natural da injeção de recursos na estrutura de formação composicional. Estes recursos já existem, na realidade. O fato de se pôr em prática ou não é somente uma decisão política. Exemplificando o caso do Ceará, para dar uma idéia prática do processo: a arrecadação tributária do Ceará, ICMS + IPVA + outros impostos, foi, no ano de 2004, de aproximadamente R$ 2.724.000.000,00. Este é um dado público, disponível na página da Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará. Se extrairmos desse valor, por exemplo, o percentual de apenas 2%, como era sugerido pela Lei Jereissati, teremos cerca de R$ 54.480.000,00, ou quase R$ 4.540.000,00 mensais que podem tranquilamente financiar milhares de projetos culturais, incluindo uma orquestra sinfônica de altíssimo nível, e ainda de sobra pode financiar esta estrutura de ensino da composição que mencionei na resposta anterior. Ou seja, a solução para este problema não é algo utópico, inantigível: é algo possível de acontecer a curtíssimo prazo. Amanhã, pode-se ter tudo isso, não somente no Ceará, mas no Brasil inteiro.
Agora, com relação à segunda parte da pergunta: as dificuldades no Brasil são ligadas à estrutura física e de apoio, por exemplo, falta de partitura, falta de livro, falta de gravação, falta de músicos, baixo salário dos professores, etc. Quando dava aula de contraponto, harmonia e análise na UECE, eu trazia um garajau cheio de livros de música e livros de outras áreas, que eu comprava com meu salário, para fundamentar pontos disciplinares e interdisciplinares, como por exemplo: porque utilizar uma abordagem materialista em oposição a uma abordagem idealista no ensino do contraponto? O aluno brasileiro, em geral, questiona essas coisas. Já o típico aluno americano, educado numa cultura calvinista, se contenta em decorar nomes, datas e regras de contraponto. Por outro lado, a estrutura educacional nos Estados Unidos, especialmente a de bibliotecas, é muito bem equipada materialmente. Por exemplo, na biblioteca da universidade onde eu leciono, é possível encontrar obras completas de diversos compositores, incluindo gravação. Em suma, a estrutura material é o fator que mais diferencia o ensino norte-americano do brasileiro.
Você apresenta um catálogo numeroso, com 104 obras. Você poderia falar um pouco sobre o amadurecimento desta produção? Que alterações e reflexões foram surgindo ao longo do tempo no seu processo composicional? De que modo a mudança do Ceará para Louisiana afetou este processo?
O amadurecimento tem pra mim um lado prático e outro mais abstrato. O lado prático se refere à notação, clareza estrutural, rapidez nas decisões, escrita idiomática, etc. O lado abstrato se relaciona com questões de identidade, nacionalismo versus universalismo ou uma mistura das duas tendências, linguagem, abordagem, intelectualismo versus intuição ou um equilíbrio entre os dois princípios, etc. A vinda para Louisiana foi fundamental para o amadurecimento prático, por conta do contato intenso com os intérpretes. Se você olhar o meu catálogo de performances, vai ver que, nesse período de 1999 a 2005, tive mais de 150 execuções de minhas peças. Esta retroalimentação, que eu mencionei anteriormente, é fundamental para o amadurecimento da técnica composicional. A clareza na notação é o ponto onde mais se evolui quando se tem constante retorno por parte dos intérpretes. Quando o intérprete pergunta verbalmente alguma coisa sobre a notação, é sempre um sinal de que as instruções precisam ser melhoradas. É um processo lento de revisão constante dos originais, e que sempre ocasiona uma evolução positiva na técnica do compositor. A dedicacão integral à composição também favoreceu a esse amadurecimento. Até o primeiro semestre de 1998, eu compunha na hora do almoço, de madrugada, depois de chegar da UECE ou do Syntagma, e nos fins de semana. Depois que cheguei aqui, pude me livrar um pouco da condição de “compositor-fugitivo”, e algumas vezes sentar calmamente durante um dia de semana qualquer e produzir horas à fio. O requisito semestral aqui para um aluno de composição é compor dez minutos de música, eu sempre compunha três vezes mais. Também é exigida uma peça orquestral de vinte minutos para o mestrado, e outra para o doutorado. Eu compus duas sinfonias, uma ópera, dois poemas sinfônicos e dois concertos. Foi uma questão de inércia: eu já vinha num ritmo tão intenso que, quando vi condições favoráveis, não consegui parar. Sobre o lado abstrato, a distância do Brasil, e o contato com outras culturas - porque aqui é uma Roma dos tempos modernos, se toma contato não só com a cultura americana mas com as mais diversas culturas - favoreceu este amadurecimento na identidade, na definição do estilo e na abordagem. É possível encontrar, na minha produção atual, traços nacionalistas e universalistas. É possível, também, encontrar obras totalmente construídas a partir da intuição, e outras que foram projetadas cerebralmente. O acesso à partituras e gravaçoes, e o contato constante com outros compositores, também facilitaram este processo de amadurecimento.
Gostaria que você comentasse a presença do imaginário do sertão em suas composições. Aproveitando o comentário, queria voltar na questão da sua formação cultural, não exatamente a acadêmica, mas de sua vida em Russas, e da mudança para Fortaleza, pois essa temática do sertão nordestino é recorrente em suas obras, e me parece que aquele aspecto da sua formação é muito forte e espontâneo na sua criação musical, independente dos recursos que você utiliza. Você poderia falar um pouco mais dessa fase inicial da sua formação musical?
Eu creio que a cultura popular das pequenas cidades do interior do Ceará é um misto de cultura urbana, com diversas influências externas, e a cultura do sertão. Não sei ao certo o quanto assimilei de ambas as vertentes, mas o primeiro contato consciente com a música nordestina veio em 1979, na Escola Técnica Federal do Ceará, quando fundei com mais cinco amigos músicos, Poty, Alcântara, Nicodemos, Fernando e Mônica, um grupo chamado Inhamuns. No repertório, havia compositores nordestinos como Fagner e Luiz Gonzaga, e como o grupo era basicamente instrumental, nós tínhamos de destrinchar o material harmônico, melódico e rítmico das canções, e então terminávamos por analisa-las informalmente. O contato inicial com a música nordestina, nesse grupo, e nos grupos instrumentais subsequentes de que participei, foi fundamental no meu desenvolvimento como compositor.
Que projetos, trabalhos e leituras você está envolvido no momento?
Na área de composição, estou trabalhando em algumas encomendas: Seresta No.14 para tuba e piano, para o grande tubista Joseph Skillen. Sonata para violoncelo e piano no.2, que vai ser gravada pelo violoncelista paraibano Felipe Avelar de Aquino, no próximo semestre. Uma peça para saxofone, sons eletroacústicos e dançarino, para o saxofonista Michael Straus. Uma valsa para o pianista brasileiro Ivan Pires, que atualmente reside em Paris, e um duo para violino e trompete para Lisa Snyder e Brian Mcwhorter. Há também diversos projetos composicionais paralelos que andam em ritmo mais devagar. Gosto de trabalhar em várias peças ao mesmo tempo.
Na área de pesquisas, estou revisando diversos artigos que escrevi nestes últimos sete anos, e também escrevendo novos artigos. Um assunto que me interessa no momento é a similaridade entre conjuntos de classes de notas como ponto de partida para uma classificação mais compacta das harmonias atonais. Uma boa taxonomia, mesmo sendo uma etapa positivista da análise, é um ponto realista de partida, sem muitos floreios poéticos prematuros beirando o charlatanismo ou estupefações oriundas de analogias tendenciosas, advindas de uma falta de conhecimento, e pode revelar muitas interligações estruturais numa obra musical: poesias e fantasias surgem naturalmente no decorrer do processo, sustentadas por uma base sólida, se é que existe solidez alguma quando tudo que se faz no mundo da análise é construir idéias a partir de modelos.
Quanto às leituras, estou buscando um contato maior com a semiótica, a matemática e a filosofia para ampliar o meu repertório de ferramentas analíticas e composicionais.
Quais os projetos futuros?
Continuar os trabalhos na minha terceira sinfonia, e revisar e reeditar algumas peças anteriores ao Opus 30. Retomar os estudos da língua francesa, para ter acesso à obra de Koechlin sobre orquestração e às novas tendências composicionais contemporâneas, como composição espectral, por exemplo.
Você apontaria que rumos para a música do século XXI?
Se o período conhecido como tonal pode ser sintetizado na idéia de prática comum, e a música do século XX na incessante busca pelo novo, mesclada à uma espécie de ditadura do determinismo, no século XXI, creio que a chave será a fusão do presente com o passado, do consonante com o dissonante, do popular com o erudito, do ocidental com o oriental. Simultaneamente e paradoxalmente à essa fusão, creio que haverá uma valorização maior das culturas locais, dos nacionalismos. Haverá também um melhor equilíbrio entre as tendências intelectualistas e intuitivas, e um maior acesso das pessoas à composição musical como instrumento de expressão, graças principalmente à tecnologia e facilidade de comunicação.
Você também se interessa por pesquisa? Como é o seu relacionamento com as outras áreas de conhecimento na Música?
Interesso-me por análise. Quando cursei o doutorado em composição, tive que optar por uma sub-área de estudos, e então escolhi teoria, que é uma disciplina que fornece a base inicial para a análise. Foi quando pude ter um contato maior com ferramentas importantes, como análise schenkeriana e teoria dos conjuntos de classes de notas, e também acompanhar em detalhes a evolução da teoria musical de Zarlino até hoje.
Luciana Gifoni. 15/09/2005.