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São Paulo S/A Direção: Luiz Sérgio Person Ano de produção: 1965
Por Roberto Noritomi
Na história do cinema urbano brasileiro, e paulista especificamente, São Paulo S/A tem lugar especial. É um filme que, além de explorar os temas da metrópole em transformação fremente, internaliza singularmente seu ritmo na dinâmica formal da obra. Nesse ponto, Person deu solução pioneira, no âmbito da ficção, para a imagem recorrente do caráter caleidoscópico de São Paulo. A cidade já vinha sendo alvo das lentes cinematográficas desde o início do século, com dramas urbanos como O exemplo regenerador, Fragmentos da vida e tantas outras produções pequenas voltadas para a exploração de temas policiais (O crime da mala é um exemplo famoso disso). Ainda na década de vinte, Alex Kemeny e Rex Lustig haviam realizado São Paulo Sinfonia da Metrópole, documentário que, apesar de distanciado do que Bernardet chama de “dimensão trágica” de Berlim, Sinfonia de uma Grande Cidade , permanece como uma das primeiras tentativas de representar a riqueza visual e de estímulos da capital paulista em fase embrionária. Foi, entretanto, somente nos anos 60 que o cinema conferiu à cidade de São Paulo um registro mais sensível aos seus movimentos internos. Assim, ao contrário do que ocorre com o trabalho de Kemeny e Lustig, em Person o filme avança na leitura da vida urbana, repondo o espírito trágico sobre uma base histórico-social até então posta de lado. O filme não se restringe a expor um drama com um pano de fundo constituído pelo cenário de prédios e ruas. Isso já havia sido feito em demasia pela chanchada e em alguns exemplares da fase do cinema industrial paulista (Na senda do crime e Simão, o caolho entre outros). Do mesmo modo, está longe de O Grande Momento (obra prima de Roberto Santos), filme em que a montagem de inspiração neo-realista restringe o olhar à crônica de costumes e à crítica social. É uma obra pautada mais por uma descrição naturalista de quadros da pobreza. São Paulo S/A, por sua vez, é um filme cuja postura analítica se tece essencialmente a partir de sua própria estrutura. A cidade se torna personagem, mas não como num documentário. Existem personagens de ficção que vivem dramas diretamente urbanos, no sentido de que são dramas originados numa situação de hegemonia da sociabilidade societária. É através das vidas de sujeitos individuais que São Paulo, metrópole, aflora em toda sua dinâmica. E São Paulo S/A, tão fiel ao “espírito” desse fenômeno urbano esfuziante, consegue internalizar o fluxo dos fatos na composição de seus elementos e de sua estrutura. O resultado é um filme de enredo simples, mas de elaboração formal complexa. O filme articula dois tempos: o presente e o passado, ambos firmados entre os anos de 57 e 61 (período da industrialização JK) . Inicia-se no presente, com um jovem casal brigando dentro de um apartamento. Ele a empurra contra o chão e sai. Depois o vemos do lado de fora, caminhando a esmo pela Avenida São João. Seu nome é Carlos e o dela é Luciana, conforme ficamos sabendo nesse momento. Meio confuso, Carlos reflete sobre sua vida a partir do desfile das lembranças sobre os últimos quatro anos, quando ingressara na indústria automobilística. Muda-se o registro para o passado. Começamos a conhecer a história de Carlos e dos demais personagens através de um relato fragmentado. Carlos apresenta três mulheres com as quais se relacionou: Ana, Hilda e Luciana. A primeira é uma garota de modos vulgares cujo objetivo é a ascensão social do modo mais fácil; Hilda é a independente, que tem um estilo de vida sofisticado; finalmente, Luciana é a namorada recatada da pequena-burguesia, presa aos valores tradicionais e que acaba se tornando a esposa. Em seguida ficamos conhecendo Arturo, o empresário sem escrúpulos do setor de peças para automóveis. Carlos o conheceu quando trabalhava como desenhista na Volkswagen. Por favorecer Arturo na compra de peças, Carlos é despedido e se torna empregado de Arturo. Além do núcleo em torno de Carlos, a interação entre os demais personagens é pequena. Ela ocorre entre Arturo e Ana, quando esta o visita para uma campanha publicitária; e entre Arturo e Luciana, nos encontros familiares. Carlos não se refere, em sua narração, a nenhum fato excepcional que tenha vivido. Expõe apenas a cotidianeidade, marcada pelos namoros e o trabalho na fábrica. É uma vida medíocre e comum que assolará sua mente e o conduzirá para a briga que já havíamos visto no início. Nesse ponto o registro retorna ao presente. Carlos, enfastiado com a rotina, resolve ir embora de casa. Na rua, rouba um carro e sai de São Paulo. No meio da estrada pára o carro em aparente estado de colapso. Atordoado, pega uma carona e acaba retornando para São Paulo. Não há, no filme, desenlaces mirabolantes. Ele detém-se no retrato da vida cotidiana de uma personagem que não desperta mais interesse do que um outro qualquer. Mas em contrapartida sua estrutura formal desenvolve toda uma reflexão sobre essa vida no contexto de São Paulo, durante o período do desenvolvimentismo. É por esse caminho que vamos abordar o filme, procurando apanhar os sinais que consideramos mais representativos, mas cientes de que outros tantos podem vir à tona sob olhares alternativos.
A espreita do voyeur
A parte inicial, ou o que seria o prólogo, chama especial atenção, principalmente porque ela, partindo do presente, ressurge no final, após o mergulho no passado ao qual nos referimos. Esta seqüência contém o mote do filme e deve ser discutida em detalhe. A seqüência começa com um plano de conjunto, visto através da vidraça do apartamento, no qual estão Carlos e Luciana discutindo. As vozes são inaudíveis. Testemunhamos a situação como se fôssemos moradores do prédio vizinho. A vidraça não nos permite ver com clareza, pois reflete os prédios. Carlos empurra a esposa contra o chão e sai pela porta ao fundo. Deslocando-se do plano de conjunto, a câmera enquadra Luciana caída. Em seguida a cena se desenvolve em um travelling para a direita (a música em espiral sufocante - "hurlulante", segundo consta no roteiro - de Cláudio Petraglia começa a ser ouvida), onde vemos o reflexo de prédios na vidraça, sobrepondo-se à imagem do interior do apartamento. Começam a aparecer os letreiros. Continuando o travelling para a direita, a câmera mostra o lado externo da parede, a mureta do terraço e logo entra no quadro os prédios do lado de fora. Sem corte, a câmera realiza uma semi-panorâmica incluindo mais prédios ao fundo. Nesse instante há um corte. Passamos para outro plano que não se refere mais ao ponto de vista anterior. De uma posição baixa, a câmera faz uma panorâmica em contra-plongée de três prédios na praça Antônio Prado. Sobre essa panorâmica se imprime o título: São Paulo S/A. Em seguida desfilam vários planos da cidade de São Paulo, desde a multidão numa estação de trem (possivelmente a Estação da Luz), passando por ruas da periferia (já com suas marcas de forte exclusão), vista aérea das edificações centrais etc. Findos os letreiros, retorna-se a um primeiro plano de Luciana caída no chão. Está fechado o primeiro círculo. A função dele, à primeira vista, é apresentar informações sobre o cenário geral na qual se desenrolará a diegese. Diz-nos que o fato aconteceu em São Paulo, que é uma cidade grande, com contrastes sociais. Não nos é dado entender as razões da briga, mas isso ainda não importa. No meio da imensidão de prédios e da multidão de pessoas indo e vindo, a cena do apartamento acaba se perdendo como mais um entre tantos casos. É provável que o espectador se fixe na imagem do casal e os eleja como foco, como tem que ser para que a ficção se realize; porém o filme, sua estrutura de montagem, aponta para outro lado. Aponta para o anonimato . São Paulo é grande demais para darmos importância para mais uma briga de casal, mais um fato privado amoroso. Os personagens que nos surgem, e depois ganharão identidade (nome, endereço e profissão), não possuem nada de especial que os singularize dentro da metrópole. Não desempenharão, portanto, nenhuma ação fantástica como os tradicionais personagens vistos, por exemplo, nas produções brasileiras de décadas anteriores. O filme os seleciona como uma amostra aleatória, semelhante ao voyeur que escolhe uma determinada janela para espreitar. A idéia nesse caso não é a de acompanhar o desenlace de uma narrativa de padrão clássico, com começo, meio e fim. Há, obviamente, uma estrutura narrativa desse tipo; temos um início que nos prende e nos faz desejosos de conhecer o final (mesmo porque o filme se desenvolve a partir de um relato do protagonista); no entanto, isso ocorre de forma distante do modelo de viés aristotélico . Não há aqui um começo antes do qual nada existia; pelo contrário, a câmera secciona uma ação em curso e não nos informa sobre sua causa de imediato (vamos sabê-la depois). Como dissemos, trata-se de uma amostra aleatória que capta um fato individual entre outros possíveis. E o que se fará é acompanhar um pedaço da história desse fato, que na verdade nada mais é do que um recorte do cotidiano de pessoas comuns vivendo numa grande cidade . Antes, porém, de encerrar a análise desse primeiro momento do filme, é importante não esquecermos da presença de um movimento circular menor (uma panorâmica) dentro desse prólogo. Este movimento não perfaz uma cena, mas sua posição e sua construção interna lhe conferem uma significação densa. Já falamos desse movimento, mas vamos a ele novamente. Logo após enquadrar Luciana e sair pelo terraço, a câmera em travelling é interrompida por um corte. Em seguida temos a câmera que, de baixo para cima, realiza uma panorâmica para a direita enquadrando as partes superiores dos edifícios da matriz do Banco do Brasil, do Banespa, e por fim o Martinelli, bem como o relógio da praça Antônio Prado. Sobrepõe-se a isso o título: São Paulo S/A. Pela posição da câmera, de baixo para cima (contra-plongée), o enquadramento dá aos prédios uma figuração gigantesca, como se fossem infinitamente longelíneos. Olhando-os daquela posição tem-se a impressão de um cerco intransponível - não importa para onde se olhe, os edifícios estão por toda volta. É a clausura. Os prédios fecham-se sobre o indivíduo. Mas ao mesmo tempo despontam para o céu, crescem. Representam a civilização e o progresso. E essa representação se potencializa justamente porque são instituições financeiras estatais, aquelas que fornecem o crédito para o avanço econômico em tempos de JK. São Paulo é esse progresso, o romper de obstáculos. Portanto, é clausura e civilização. Não por acaso, está ali o relógio como o instrumento regulador das rotinas diárias dos indivíduos que fazem São Paulo crescer. Não é por acaso, o relógio estará presente ostensivamente, qual sentinela, ao longo de todo o filme, pontuando os passos titubeantes de Carlos e seus interlocutores. Nas cenas entrevemos relógios de ponteiros, pêndulos, cookoos etc. Enfim, o caráter circular tanto da panorâmica quanto do relógio mostrado por ela nessa abertura conformam uma idéia sintética sobre a cidade, qual seja, a do cativeiro. Concluída a discussão dessa rápida seqüência em forma de prólogo, percebemos aí alguns tópicos sobre os quais o filme se organizará. São eles: a circularidade já anunciada; a fragmentação; a massificação e o anonimato como correlato; e, finalmente, o desenvolvimento histórico-social como base de tudo isso. Nossa análise procurará identificá-los através de uma maior aproximação do texto fílmico.
Taking a rock around the clock
Em São Paulo S/A, como foi dito, a profusão da dinâmica urbana é internalizada de forma ímpar, densa. Isso torna o filme repleto de elementos estruturadores de importâncias semelhantes. Iniciaremos nosso percurso analítico pelo que nos é dado de imediato, como porta de entrada. Trata-se da sua circularidade ostensiva. Num plano mais geral, o filme se põe como um todo circular que é reposto em cada uma de suas partes componentes, numa sobreposição e justaposição de circularidades. Para uma comodidade analítica, podemos dividir o filme em dois momentos básicos e complementares que sustentam o círculo maior. O primeiro definido pela errância do personagem por entre mulheres e empregos e o segundo pela estabilização matrimonial e profissional. A linha divisória sendo a cena do casamento, na qual ocorre a única transição de seqüência sem o corte seco, ou seja, utiliza-se o escurecimento de tela (fade out/fade in). Essa divisão dual demarca o ciclo vital do personagem e do próprio filme. Dentro disso são estabelecidas as situações circulares menores. Partiremos delas para compreender o círculo maior. Vamos, pois, definir dois tipos de circularidade que podem ser vistos no filme: a circularidade temporal e a espacial. A circularidade temporal, a espinha dorsal da narrativa, está radicada no movimento da memória. Carlos utiliza-se da memória para estruturar sua narrativa dos fatos, como se desejasse reconstruir as ruínas de sua vida para redimi-la. Ele sai do presente e vai ao passado, para novamente retornar ao presente. Não há como escapar a esse círculo. Sempre o presente será o ponto de partida e necessariamente o de chegada, por mais que se embrenhe no labirinto do tempo e tente nele se refugiar. Começamos, assim, pela seqüência em que Carlos, depois de sair do apartamento, é flagrado em primeiro plano aberto subindo a São João, em direção à praça Antônio Prado (onde a panorâmica sobre os bancos, no prólogo, ocorre, o que faria suspeitar que o ponto de vista era o dele). A câmera na mão acompanha Carlos pelas ruas do centro bancário. Nesse momento as lembranças vão emergindo. É quando vamos entrar em contato com a versão que Carlos tem da história. Através dele somos apresentados a Ana, Hilda, Luciana e Arturo. Todos eles são introduzidos na primeira parte do filme e vão retornar na segunda. Com exceção de Hilda, que morre, os demais personagens permanecem como uma constante a lembrar que tudo é sempre a mesma coisa. Carlos procura fugir, mas acaba voltando - parece estar agrilhoado a eles, assim como está à cidade. Passa-se o tempo, a partir do seu namoro com Ana, e de repente ela lhe aparece coincidentemente na empresa de Arturo, como garota propaganda. Hilda também desaparece na primeira parte, mas Carlos novamente depara-se, acidentalmente, com ela em meio à multidão. Com Arturo é diferente. Carlos não o suporta, mas é obrigado a se vincular a ele por sobrevivência (e dele está fadado a nunca escapar). Quanto a Luciana, Carlos está preso a ela por acomodação e medo da solidão - é igualmente premido. Portanto, os personagens lhe surgem como a lembrá-lo de que não há saída, ou seja, postam-se como guardiões da vida domesticada pelas convenções. E o próprio relato é um ir e vir no tempo. Carlos não segue linearmente no passado; vez por outra o vemos no presente, nas ruas, vagando pelas ruas centrais da cidade. Em termos espaciais, a circularidade se objetiva na reiteração de planos e cenas no centro de São Paulo. É como se tudo girasse em torno daquela região e dela não se pudesse sair. Os encontros com Luciana, Ana e Hilda tem o centro como palco; a errância de Carlos, no presente, se faz basicamente entre a São João e o Viaduto do Chá. Aliás, o Viaduto do Chá se destaca como foco de atenção. Por cinco vezes o vemos aparecer, às vezes sem vínculo algum com qualquer ação. Simplesmente surge como elemento independente, a querer imprimir algo - o retorno. Carlos anda praticamente por 24 horas, fechando o ciclo de um dia, do amanhecer ao amanhecer, mas o faz em círculos. Está sempre no mesmo lugar. Mesmo quando sai de São Paulo, como é o caso do passeio com Arturo, as idas à praia ou à Guarapiranga, está no horizonte a volta. Descansa-se e retorna-se. Mesmo Hilda, que quer fugir da cidade e vai morar numa fazenda com o marido, termina voltando. E é só através da morte que ela consegue escapar definitivamente. Nesse ponto a cidade é inexorável. Ela age como uma engrenagem que não pode prescindir de nenhum de seus componentes. Não há autonomia, estando as partes subordinadas ao todo. Essa idéia de engrenagem percorre o filme de forma explícita, ostensiva demais. Planos autônomos ou não são inseridos entre uma cena e outra durante o filme. Começa quando Carlos está lembrando de sua entrada na Volkswagen, mas não se restringe a esse tipo de referência documentária ou alusiva. A imagem da engrenagem, simbolicamente, pontua outros momentos do filme. Acrescentem-se a isso as repetições em off de Carlos sobre o “recomeçar”, como na seqüência no Viaduto do Chá. Um travelling lateral enquadra Carlos caminhando em primeiro plano aberto, com o Vale do Anhangabaú atrás e o Viaduto Santa Efigênia mais ao fundo. Alternando-se o travelling da caminhada com planos de engrenagens em funcionamento, Carlos tece seu monólogo: - Recomeçar... trabalhar... mil vezes trabalhar... esquecer Ana... Apagar Luciana... não lembrar-se que de trabalhar... das cinqüenta obrigações diárias... - Lembrar-se somente das mil chateações diárias do trabalho... Lembrar-se que uma engrenagem e mais outra e mais outra e mais outra devem ser entregues dentro do prazo estabelecido... Ler as condições de compra... devolver... - Mil vezes recomeçar... recomeçar de novo... recomeçar sempre... esquecer Ana... apagar Luciana... Lembrar-se das obrigações diárias do trabalho... Recomeçar! Recomeçar ! Recomeçar! Essa resignação encontra eco, entre tantas outras, na seqüência final, que de certa maneira dá o fecho para aquilo que o prólogo nos anunciava. O momento é central para a compreensão de tudo que temos dito. É a conclusão do círculo maior que amarra o filme e que envolve e dá sentido a todos os outros. A seqüência se inicia logo após a retomada da cena da briga, na parte final. Carlos aparece num plano geral, visto do alto, caminhando entre automóveis num estacionamento. São muitos carros e ele procura um com a porta aberta. Conforme testemunhamos na discussão com Luciana, Carlos quer abandonar tudo e ir embora. Mas recorre justamente àquilo que é o motivo da sua situação profissional e de sua vida: o automóvel. Está indo embora, mas se depara com o seu algoz. Literalmente se debate entre os carros. Consegue por fim abrir um Karmann Ghia e começa a fuga. A trilha sufocante do início acompanha. Alternam-se aí planos de Carlos no carro e planos gerais da cidade, da escola de inglês onde conheceu Luciana, da fábrica de Arturo etc. Carlos finalmente parece estar se libertando, pondo termo à sua agonia. Começa a cantarolar e a dizer adeus a tudo. É o ápice catártico que pensamos presenciar e que satisfaz um desejo do próprio espectador . No entanto, há um corte que interrompe a euforia visual e sonora. Na tela aparece Carlos dentro do carro, à beira da estrada, próximo talvez da baixada santista. Ao fundo, o mar inspira liberdade. Carlos está atordoado. Retira-se do carro e acena para um caminhão. Pega a carona. O motorista lhe oferece cigarro e ele responde que parou de fumar, e o motorista ironiza dizendo: “Eu também, várias vezes”. Num dado momento, a câmera, assumindo o ponto de vista do motorista, enquadra uma placa circular do Automóvel Touring do Brasil que indica São Paulo. Carlos está retornando. Pela janela se observam as fábricas ao lado da estrada. Sobre a imagem de Carlos vão se sobrepondo imagens da Praça Ramos, da multidão caminhando logo pela manhã. Tudo está de volta. Por mais que Carlos tenha buscado resistir, andou em círculos. Como Sísifo, suas tentativas são em vão. E a dor é maior por reconhecer a inutilidade da fuga .
Recolhendo os cacos
Outra experiência urbana que o filme incorpora em sua reconstrução da realidade é a fragmentação. A vida metropolitana, constituída pelos eventos e relações de variado tipo, produz esse fenômeno de forma implacável e recorrente. Em São Paulo S/A a ordem do relato se sustenta nessa fragmentação. Além da quantidade de informações expostas no enredo, em diversos níveis e materiais (ver Noel Burch, Práxis do cinema), há a descontinuidade estabelecida pela exposição narrativa. São dois momentos que estão articulados dentro do filme, mas que podemos apreender, pelo menos para fins analíticos, separadamente. Em primeiro lugar, São Paulo S/A nos oferece desde os elementos diegéticos mais imediatos, atrelados aos personagens, até aqueles de ordem histórica, que são convertidos em diegéticos. São informações que exigem a nossa atenção a partir de vários registros de conhecimento: do destino dos personagens dentro do universo ficcional; da cidade de São Paulo e o lugar dela na ficção; e, finalmente, do contexto nacional no período de 1957 a 1961. Poderíamos afirmar que o filme contém várias histórias que fluem em paralelo, entrelaçando-se. Os cinco personagens principais por si só já comporiam um quadro de dispersão. Estão vinculados, mas isso se dá de modo tênue, pautado por laços que não têm força, pois o protagonista (Carlos) não mantém com eles uma interação que os transforme mutuamente - não há uma comunidade de interesses ou um projeto. Cada um segue sua vida de modo independente, buscando objetivos próprios. E ao espectador não é dado saber o percurso integral dessas vidas. A narração fica à mercê das idas e vindas da memória de Carlos. Assim, o desenvolvimento das personagens surge na tela com lacunas, isto é, não podemos conhecer de forma linear e contínua os fatos que estruturam as vidas de Ana, Luciana, Hilda e Arturo. Nem mesmo Carlos possui unidade. Na verdade, ele é o personagem que contém os principais traços da fragmentação; a natureza de sua constituição é ela mesma essencialmente partida. Sua falta de rumo expressa isso. Ele vaga desnorteado no tempo e no espaço, seu espírito vacila diante da estabilidade dos outros personagens. A única diferença é que talvez sua história é a que se expõe mais claramente, ou melhor, é a que conseguimos acompanhar com uma certa continuidade. E assim é, para que possa conduzir o foco narrativo e conferir-lhe algum sentido. Adicionando-se a essa fragmentação no nível ficcional, São Paulo S/A apresenta uma série de informações dissimuladas ou ostensivas sobre o processo de transformação pelo qual passa a cidade e o país. Vão surgindo na tela, como pontuação, cenas de obras públicas, eventos corriqueiros da cidade, fluxo de pessoas em ônibus, bares e cinemas. Como componente ostensiva, entram as referências discursivas, de Arturo e Carlos, sobre a industrialização automobilística, o papel do estado de São Paulo na economia etc. Misturam-se esfera pública e privada, economia, política e questões existenciais. Tudo se impõe desordenadamente, entrecortando o tecido fílmico e exigindo que nossa percepção esteja em constante estado de alerta, como se sofrêssemos os estímulos e “chocs” da dinâmica da metrópole incansável. Essa transposição encontra seu correlato na construção formal do filme. Em sintonia com a fragmentação de conteúdo, Person trabalha com uma montagem descontínua e irregular sustentada pela estrutura da memória. Isso ocorre “pois o acúmulo de fatos que o filme pretende mostrar dificilmente suportaria uma seqüência linear de acontecimentos” . A descontinuidade, mas não necessariamente os faux raccords, impregna o filme, rompendo com a unidade das cenas. Algumas momentos são exemplares. Há a cena na qual Carlos e Ana conversam num restaurante (Paribar), que é interrompida pela inserção da cena referente à indústria automobilística. Ocorre também na cena do trem, com Carlos e Ana, à caminho do Asilo em São Miguel. Cingindo a cena ao meio surge a cena de um passeio com Luciana. A descontinuidade se apresenta, igualmente, no registro dos personagens com os quais Carlos mantém relações. Nesse caso, além de eles surgirem de forma aleatória e os núcleos dramáticos não pertencerem a uma lógica de encadeamento (como se os rolos de filme tivessem sido montados às escuras), o que se verifica é uma oscilação aberta das situações (tanto na banda sonora quanto no cenário). Isso é constatado com veemência nas cenas com as figuras femininas. Para cada uma delas há uma ambiência específica, que demarca diferenças de ritmo e de comportamento: desde a lascívia esfuziante de Ana até a melancolia pausada de Hilda, passando pelo recato medíocre de Luciana. Um outro aspecto que deve ser notado é a disjunção entre o que se fala em off e a imagem exibida. Estamos diante do que Burch denominaria de “dialética” de som e imagem. A cena da lambreta, por exemplo, mostra-nos Carlos e Luciana numa estrada, enquanto em off ouvimos um diálogo entre aquele e Ana. Cinismo fica patente, apontando para uma difícil resolução das tensões vividas por Carlos. Finalmente, temos a dialética (mais uma vez lembrando de Burch) da montagem das cenas e seqüências, onde encontramos a existência de planos com durações e texturas diversas. Em algumas, o plano-seqüência predomina, como se observa quando Carlos está pedindo um empréstimo à Arturo, no descampado, ou quando comunica-lhe o casamento. Os cortes rápidos, por outro lado, estão presentes na cena em que Carlos flagra Ana na praia. Em outros momentos utilizará a estilização (por exemplo na representação do baile de carnaval com Hilda), o cinema-verdade nas ruas, os efeitos de lente e tantos outros recursos. Person não se prende a uma dominante formal; ao contrário, ele colhe e manipula as influências de acordo com as suas necessidades narrativas , fato que intensifica o caráter multifacetado e explosivo do filme. O resultado é uma obra ora mais acelerada, ora mais lenta, sensível às tensões do objeto que quer representar, no caso a experiência da cidade de São Paulo.
O homem na multidão
Por demais repetida, a associação da multidão à experiência urbana é sempre encontrada na literatura e no cinema. Somem-se a isso o anonimato e a solidão. São todas imagens constantes no senso comum. São Paulo S/A não deixa de utilizá-las. Mas o faz de forma inaugural na seara cinematográfica brasileira. Inaugural porque, longe do “simples pano de fundo”, o filme insere o foco narrativo ( o protagonista), e conseqüentemente o espectador, no vórtice exasperante das ruas abarrotadas. O personagem de Carlos se deixa engolfar pela realidade ao seu redor, principalmente porque a filmagem em locações externas possibilitava (e forçava) o envolvimento com o imponderável das situações reais . É como se Carlos fosse um meneur en jeu que nos conduzisse pelas ruas, pela diversidade das situações urbanas (ou paulistanas), num trajeto de documentário, apresentando-nos o corpo a corpo com multidão. No entanto, diferentemente de Calunga, o meneur en jeu de A Grande Cidade, a condição de Carlos não é de onisciência e distanciamento. Calunga “orienta as personagens, arma situações e comenta a ação, mas sem participar diretamente dela, sem ligar-se a coisa alguma, permanecendo num plano superior, colocando-se numa posição marginal em relação à ação, embora ele próprio imigrante nordestino” . No caso de Carlos, ele faz parte das ações, vive-as e seu ponto de vista é restrito à sua esfera de alcance individual. E sendo ele o foco narrativo, nós acabamos por ser submetidos às incertezas e indecisões de seu espírito. A realidade que presenciamos é tão fragmentária e titubeante como é a memória e o olhar de Carlos, e isso nos torna mais cúmplices de sua errância e mais íntimos de São Paulo. É esse o projeto de Person. Para além de contar uma história, sua pretensão é a de fazer com que o filme exale a cidade. Nota-se tal intento, de imediato, por aquilo que já mencionamos acima, isto é, a exposição de uma profusão de elementos, fatos, personagens, objetos etc. O filme transcende a tela pelo excesso, pela multidão. Mas se antes nós víamos isso como um mecanismo de laceramento, fragmentação, agora percebemos seu lado envolvente e opressor. Desde a primeira seqüência, após o prólogo, somos levados por entre as pessoas, através da caminhada de Carlos. A câmera deslocando-se para frente, que vez ou outra assume a posição subjetiva (os enquadramentos se confundindo com o olhar do personagem), nos coloca no sentido contrário ao fluxo da rua Boa Vista e vemos os passantes se aproximando, esbarrando, olhando para a câmera. Estamos no meio da multidão. Assim como Carlos, nós testemunhamos a vida nas ruas em processo. E o filme se preocupa em dar provas disso. Da perspectiva de Carlos, observamos um menino fazendo bolhas - seu rosto é enquadrado num primeiro plano fechado que parece acentuar seu caráter de prova do real, isto é, de que realmente o personagem está ali, na São Paulo para ele considerada verdadeira. Ainda outras cenas estabelecem uma relação mais profunda de Carlos com a multidão, de forma extremamente literal. Ocorre, por exemplo, quando o vemos assistindo ao desfile da campanha de moral e civismo. Num travelling lateral assumimos o olhar de uma mulher que distribui panfletos. Ela percorre a fileira de pessoas na calçada e, num dado instante, se depara com Carlos entre os demais e lhe entrega um panfleto (um artifício que o incorpora ao meio naturalmente). O mesmo reconhecimento se dará quando Carlos, entre os passantes no Centro, vê uma vendedora de bilhetes e esta, vista em primeiro plano (do ponto de vista de Carlos), lhe oferece um bilhete. Esse tipo de “flagrante” na multidão vai se repetir em pelo menos mais dois momentos significativos. Um deles se dá durante uma pregação de rua , quando novamente a câmera, simulando um movimento a esmo, “descobre” Carlos entre a pequena platéia que ouve, em círculo, o pastor. A câmera se aproximará de Carlos, perfazendo uma trajetória, e o circundará como se realizasse um giro ao seu redor. Também no caso da primeira seqüência de praia, em São Vicente, um travelling enquadrará, em plano de conjunto, Carlos premido entre curiosos que olham um salvamento. Antes disso, na mesma seqüência, Carlos pode ser visto desviando-se de carros, ao lado de pedestres atravessando a rua. Em todas essas cenas, juntamente com aquela do desfile, os enquadramentos funcionam para demarcar a situação de inclusão do personagem à multidão, ou melhor, da sua condição “claustrofóbica”. Encontraremos essa idéia ainda em vários outros momentos, sem a mesma forma de imersão, porém com o forte efeito de envolvimento. Isso se verifica nos deslocamentos de Carlos. Para qualquer lugar que ele vá, em São Paulo ou nas regiões vizinhas, sempre está na presença das aglomerações grandes ou pequenas. Na escola de inglês a sala de aula está sempre cheia e apertada; na chopperia (Zillertal, em Moema) homens de terno e gravata lotam o ambiente; o ônibus parte com passageiros pendurados à porta; o cinema tem filas longas; um plano do portão de uma fábrica mostra a enorme movimentação de operários saindo; a noite de reveillon é passada em boates lotadas e em meio às celebrações da São Silvestre. Há uma saturação de pessoas, como se o protagonista nos conduzisse pela multidão. E essa é uma marca do filme, saturar ao extremo a tela. Numa passagem do roteiro referente à saída do estádio, não incluída na montagem final, Person escreve que “A estrutura definitiva destas últimas cinco seqüências deverá ainda ser mais bem estudadas, tendo em vista mostrar aspectos da vida comum da cidade nas horas de lazer, onde o paulistano dispende igual dose de energia para se divertir ou passar o tempo, mergulhado numa grande densidade coletiva do mesmo modo que nos dias de trabalho. É uma tomada de contato com a vida de São Paulo, dentro da qual, juntos, Luciana e Carlos procuram inserir-se”. Trata-se, contudo, de uma inserção que retira a singularidade individual, pois quando a câmera “flagra” Carlos na multidão, sua meta é enquadrá-lo como “um rosto a mais”. A imagem adquire maior intensidade e eloqüência se pensarmos também nos prédios que surgem de maneira recorrente. Começa pelo plano inicial do prólogo, no qual os vemos refletidos na vidraça do apartamento. Entram em cena como testemunhas indiferentes aos dramas dos moradores. Ao mesmo tempo, anunciam a presença inexorável, onipotente e onisciente, da cidade. Ela é gigante e se estende para todas as direções e para o interior dos lares - determina a vida. O simples fato de as filmagens terem sido em exteriores, principalmente nas ruas centrais, possibilita a constância das imagens dos prédios ao fundo do campo visual. O travelling em que Carlos acompanha Luciana, na Praça da República, é bastante esclarecedor. Além de enquadrar a passagem das pessoas, a câmera, de baixo para cima (contra-plongée), capta os prédios como se eles emoldurassem a seqüência; depois, tendo o casal saído de quadro, a câmera enfoca dois prédios num ligeiro deslocamento vertical que os singulariza. Isso se encontrará novamente na cena em que Carlos caminha pelo Viaduto do Chá acompanhado pela sua voz em off: “Recomeçar ...”. Um travelling lateral o acompanhará até que, após fixá-lo num primeiro plano, mostrará um prédio alto ao fundo. Mesmo no litoral, no apartamento de Hilda, veremos a ostensividade do concreto. Carlos está na cama, ao lado de Hilda. Levanta-se e vai até a janela, abre a cortina e o que surge são as pessoas e os prédios lá fora. Em seguida, quando estão caminhando pela praia, a panorâmica revelará, por mais de uma vez, uma fileira longa de prédios brotando da orla marítima. Por último, temos Carlos na seqüência da fuga. A câmera, do alto, mostra um plano de conjunto de Carlos cercado de automóveis, num estacionamento; sua figura é quase ínfima. Num contra-campo, a câmera assume o ponto de vista de Carlos, que olha para cima, e vemos os prédios se impondo, cobrindo a tela. Com todas essas constantes de prédios e pessoas envolvendo ou emoldurando a maioria das cenas, o filme cria uma atmosfera de clausura e esmagamento. A quantidade se impõe e lembra a todo instante o quão enorme é a cidade e a impossibilidade de prescindir dela - seus ícones estão lá para nos lembrar disso (o MAM, o Ibirapuera, os Bancos, o Viaduto do Chá, o Obelisco, o Martinelli, a Guarapiranga, a Biblioteca Municipal, a Praça da República e o colégio Caetano de Campos e mais uma miríade de locais anônimos). Assim, “como Carlos não se impõe, quem se imporá é São Paulo, cujo dinamismo dará à fita seu ritmo. Os fragmentos vão desfilar velozmente à nossa frente. A câmera não pára. São Paulo despeja diante de nós tudo aquilo que tem a oferecer” . E como a multidão (em todos os sentidos) sufoca a diferença, o protagonista e seus interlocutores, que nos filmes de tratamento clássico (convencional) se distinguem pelas suas características e ações extraordinárias, neste caso vão gradativamente se convertendo em indivíduos comuns iguais a tantos outros habitantes da cidade. Nada singulariza um drama privado - por exemplo, o do casal Carlos e Luciana - quando existe uma imensidão deles aflorando a todo minuto (exceto, é claro, nos casos explorados pelas páginas policiais da imprensa). Deste modo, Carlos chega ao fim do filme como um desconhecido. A sobreposição e fusão de planos de pessoas sobre o rosto de Carlos, no último plano do filme, alude para esse desvanecimento do personagem na massa; tornou-se anônimo . E o anonimato rima com a solidão, principalmente no cenário urbano. Apesar de envolvido pelos inúmeros vizinhos, o indivíduo está só, ensimesmado nos limites de suas preocupações privadas. Esse é o fato que a crise de Hilda nos aponta. O personagem de Hilda vive sem as amarras institucionais, não tem profissão definida, seus vínculos amorosos são tênues e o casamento é interrompido pela morte do marido. Ela é uma figura solitária. Observe-se, nesse caso, a cena no apartamento de Hilda, já viúva e deprimida. Trata-se de uma cena sintética, carregada de simbolismo óbvio, mas forte. Aliás, a presença de Hilda sempre sintetiza algo. É a crise diante da solidão da cidade ela mesma. Sempre que seu apartamento surge temos um plano do corredor de tijolos extravasados, vazio e comprido. Voltando, porém, à cena, após o almoço temos Hilda falando de sua tristeza a um Carlos pouco atento ao que diz. Temos então um plano médio de Hilda com a parede acinzentada pela luz logo atrás. Há um novo corte, vemos Carlos pegando sua pasta e se afastando para a porta diante do “monólogo” que Hilda inicia. Depois temos o plano de Hilda defronte da janela que possibilita um plano geral de São Paulo do lado de fora. A câmera enquadra o rosto e o ombro de Hilda (em perfil e com os traços visíveis de sua silhueta) e se afasta num travelling para trás que vai isolando seu perfil contra a luz natural que vem de fora. Sua voz vai repetindo numa ironia amarga: “pessoal e intransferível... pessoal e intransferível...”. Forma-se um quadro no qual a figura de Hilda perde os traços, fica chapada e escurecida contra a luz, e o plano geral dos prédios lá fora ganha relevo. Assim, o indivíduo se anonimiza na imensidão da cidade. Seu suicídio posterior vem desnudo de qualquer aura: é mais um caso policial e motivo para fofocas entre os vizinhos - “e sua morte não teve o pretexto de uma guerra”, afirmará Carlos, quase como um epitáfio para um fato anônimo, ainda mais numa cidade onde morrem centenas de pessoas por dia. Uma cena muito próxima desta é aquela na qual Carlos e Hilda, após visitarem o MAM, postam-se frente ao lago do Ibirapuera em meio aos passeantes. A câmera coloca-os num plano de conjunto que, em travelling para trás, vai se abrindo para finalmente enquadrá-los diminutos no todo formado pelo skyline da cidade ao fundo. Como palco trágico, São Paulo se impõe em cada fotograma, em cada ponto luminoso da tela – impregna todas as cenas.
Pelas mãos femininas
Em São Paulo S/A a personagem feminina bem delineada é o contraponto para um protagonista à deriva, sem projeto próprio e de identidade fragmentada. As três mulheres, cada uma corporificando um certo tipo de estilo de vida, lembram a Carlos a sua situação em sociedade e acirram suas tensões. É claro que há o risco de cometer equívocos, como alerta o crítico M. A. Barcellos: “cristalizadas, essas figuras dramáticas perdem o dinamismo realista, são diminuídas na expressão da sua interioridade e se transformam numa constatação, até certo ponto, acrítica” . No entanto, ainda que possamos divisar um aparente reducionismo “machista” de Person, a construção das personagens femininas (quase caricaturais) acaba por servir ao questionamento da mulher e dos papéis que ela assume no contexto social, ou seja, não se está definindo um lugar “natural”. Nesse sentido, o olhar é de um distanciamento didático. Para entendermos isso, é preciso observarmos como aparecem as personagens e como elas se relacionam com Carlos. Vamos começar por Ana, que nos é introduzida primeiro. Sua presença é modesta e sem traços dramáticos. Representa uma mulher independente mas sem personalidade. É construída como um personagem volúvel, que procura objetivos imediatos de estabilidade e riqueza, a ascensão social fácil. Esse fato já é notado logo que a vemos com Carlos no restaurante. Ela parece gostar de Carlos, mas afirma que precisa de “estabilidade, segurança”. O que se deduz é que busca um casamento que lhe proporcione isso, ou seja, pretende utilizar-se de mecanismos tradicionais, não econômicos, para conseguir melhorar sua condição financeira. Sua jornada segue por caminhos alternativos à esfera diretamente produtiva. É por isso que geralmente suas cenas estão inseridas em situações de lazer ou lascívia: os passeios de lancha na praia, o banho de mangueira, a ida à chopperia, etc. Ana vive no hedonismo. A única cena em que a vemos trabalhando é quando está desempenhando o papel de garota-propaganda (divulgando peças vestida de maiô), isto é, uma atividade associada à falta de qualificação e, em alguns casos, a um certo tipo de prostituição. E isso se confirma no momento em que ficamos sabendo de seus vínculos com Arturo, um empresário casado. Está claro que se trata de uma relação baseada em interesses materiais, e da qual ela tentará tirar o máximo de proveito (inclusive para conseguir emprego para uma amiga mineira). A segunda cena na qual Ana está fora do prazer e do lazer é na visita à sua mãe no asilo. É um momento em que ela é apresentada como uma filha ingrata, que abandonou a mãe e confessa, para Carlos, sua vontade de para lá não voltar mais. Todas essas situações contribuem para conferir um caráter negativo ao personagem. A relação com Carlos se dará a partir disso. Carlos só a procura por causa de um interesse imediato, sexual. Isso se explicitará quando, já namorando com Luciana, ele dirá à Ana que continuará a sair com ela, mas “claro que não é para andar de trem ou ir visitar sua mãe no asilo”. Além disso, Carlos destilará sobre ela todo o seu preconceito machista: “Ana, Luciana, é tudo a mesma coisa”, desabafará ele durante a noite na chopperia. Com Ana, Carlos está no reino da liberdade - sorve prazer físico, humilha-a, espanca-a. Ela funciona como uma válvula de escape; portanto, do contato com Ana nenhuma metamorfose profunda acometerá seu personagem. Hilda também é uma mulher sem laços fortes com Carlos, e seus demais vínculos afetivos são implícitos. Entretanto, sua presença, diferente daquela de Ana, é mais marcante e tem um provável efeito catalisador. É construída a partir de um modelo de mulher independente e intelectualizada, de personalidade clara mas sem uma inserção profissional definida. O filme tipifica essa situação de modo ostensivo: Hilda mora só; seu apartamento no Centro é repleto de livros (a câmera atenta para exemplares de El Cid e de Paul Valéry sobre a mesa); visita museus e comenta artes plásticas. Financeiramente autônoma, ainda que não conheçamos as fontes, suas preocupações materiais não aparecem. E apesar de viver com maridos ou amantes ricos, não é como Ana, pois não se prostitui e não busca ascensão de status social através dos relacionamentos ou oportunidades imediatas. Mas é uma personagem existencialmente problemática. É melancólica. Quando fala, seu tom de voz é grave, refletido. Seu posicionamento é trágico, parece derrotado desde o início; tanto é assim que nós somos apresentados a ela pela notícia de sua morte. Sua história surge como algo irreversível, cujo final já conhecemos. No caso da relação que Carlos terá com Hilda, esta será praticamente o inverso daquela que mantém com as outras duas personagens femininas (Ana e Luciana). Ela praticamente domina as situações em que aparece. A Carlos cabe o papel de ouvinte passivo, calado. Quando tem iniciativa da fala, é sempre de forma destoante em relação à altivez e sofisticação de Hilda, que não se abala com nada. Aqui pode ser feito um paralelo com A Doce Vida (Fellini, 1960), no qual Guido (Marcello Mastroiani) vive a situação de impotência diante da consciência crítica de Steiner, um intelectual em depressão . Hilda, assim como Steiner, expressa, de certo modo, a objetivação da consciência de mal-estar no mundo que o filme quer representar. Junto com Carlos, Hilda é a personagem que mais questiona, mas seu questionamento é mais definido e conseqüente, ao contrário das vacilações e recuos de Carlos. Ele não tem autonomia diante de Hilda. Ela o conduz: leva-o à praia, às margens da Guarapiranga, ao seu apartamento, ao museu e mesmo ao Hotel. E se enquanto com Ana e Luciana ele chegava às raias da humilhação, com Hilda a posição se inverte, ou seja, é ela quem subjuga. Exemplo disso ocorre quando estão os dois no apartamento em Santos e Hilda afirma categoricamente: “Carlos, você não é e nem nunca será meu amante”. Hilda o desqualifica e a resposta dele é o silêncio, o conformismo (mas não a tristeza). Para fechar o quadro das figuras femininas, há Luciana. É a personagem feminina de quem temos mais informações em função da clareza de sua inserção social. Podemos conhecer sua família, sua idade (21 anos), seu grau de instrução escolar, o fato de não estar trabalhando, e sua trajetória não nos fica tão dispersa. É a típica mulher de família tradicionalmente estruturada e cujos controles são ainda rigorosos (por exemplo, quando os pais viajam, ela é obrigada a dormir na casa de uma tia). O filme procura acentuar essa imagem através de cenas marcadas pelo recato. Enquanto Carlos tem relações sexuais com Ana e Hilda, com Luciana nós só os vemos em passeios singelos, no cinema, na escola de inglês, em bailes vespertinos etc. Não sabemos seu endereço com precisão, mas supõe-se, a partir da cena do escândalo, que resida numa casa, em um bairro de pequena-burguesia tradicional, talvez na zona norte ou pelos lados da Moóca ou do Belenzinho. É formada para o casamento, porque caso contrário teria se profissionalizado (não sabe nem datilografia), e seus anseios são pautados pela estabilidade matrimonial e pelo sucesso material. De certo modo, isso fica explicitado na cena do pedido de casamento, em que Luciana afirma: “- ...tudo o que desejo é uma vida digna para nós e nossos filhos... nunca pude tolerar a idéia de que prá ser feliz basta ‘amor e uma cabana’... não, desse modo seria injusto botar filhos no mundo... prá quê?”. Por tudo isso, Luciana é a mulher que vai de modo mais profundo afetar a vida de Carlos. Seu papel é semelhante ao de Arturo. Aquele integra Carlos no mundo do trabalho, enquanto esta o faz com relação à esfera familiar. Obviamente ambos os processos estão intimamente ligados e Arturo e Luciana não vão deixar de exercer pressão nos dois aspectos. Arturo o felicitará pela decisão do casamento e arrumará o dinheiro, enquanto Luciana por sua vez irá propor àquele a sociedade na empresa, fato que enreda Carlos ainda mais na produção. Luciana, complementada por Arturo, é o lastro com a sociedade. Enfim, São Paulo S/A expõe três perfis femininos que colocam em pauta a situação da mulher e dos papéis a ela atribuídos num meio urbano em acirrado processo de transformação econômica e social.
Mazelas do desenvolvimento
Com São Paulo S/A Person fez uma obra de interpretação de uma das fases mais significativas do processo sócio-econômico brasileiro, aquilo que Florestan Fernandes denominou de “irrupção do capitalismo monopolista” . Mas é interessante observar que o filme foi concebido com o olhar de 1963, quando uma crise se firmava e o modelo de Juscelino não apresentava mais força, isto é, o “inegável ritmo acelerado de crescimento e diversificação do sistema produtivo, que havia permitido o slogan ‘Cinqüenta anos em cinco’ para o quinquênio JK, já estava ameaçado: no último ano de seu governo, uma taxa de inflação de 30,9% era uma pálida imagem do processo inflacionário que corroeria o sistema econômico-financeiro nos anos seguintes” . Assim, seu olhar já é de desmistificação, de crítica da ilusão desenvolvimentista. O personagem principal do filme, parece óbvio lembrar, é a própria São Paulo. Mas não se trata de uma São Paulo abstrata, não é um ethos urbano universal que se observa. A originalidade de Person está na sua leitura de uma cidade determinada historicamente, com uma característica sócio-econômica específica e com data (tanto é assim que somos advertidos de que os fatos se passam entre 1957 e 1961). Por esse motivo, São Paulo S/A não se restringe ao seu registro ficcional principal e avança pelas fronteiras do documentário. O filme, portanto, pode ser lido como uma alternância: é ao mesmo tempo o relato das memórias de um homem e o retrato de um momento histórico de uma cidade (e de um país). Não é, entretanto, uma justaposição diacrônica de registros. Assim como nos itens anteriores apontamos para uma internalização formal das questões externas, aqui também se dá internalização semelhante: a história concreta “faz parte” do drama individual exposto no registro da ficção. O filme somente se realiza porque o personagem Carlos é atingido por uma crise originada no processo de industrialização e modernização paulista ocorrida em meados da década de cinqüenta. São Paulo S/A se articula sobre esse fato. Foi devido à Volkswagen que Carlos conseguiu o emprego e, como se vê depois, é a partir daí que tem início seu drama pessoal. A seqüência que nos introduz a isso é bastante didática. A câmera mostra a Volkswagen em tom documentário, com vários planos de operários na linha de montagem do “fusca” (o carro símbolo da industrialização, que começou a ser fabricado em 59 com mais de 90% de peças nacionais). Foi ali que começou tudo. A voz em off de Carlos, durante a exposição da fábrica, explica: “A indústria de automóveis estava precisando de jovens competentes... Com um diplominha de desenhista industrial empreguei-me na Volkswagen”. Como Carlos, os outros personagens também vão orbitar em torno desse impulso industrial. Haverá um efeito multiplicador que incidirá sobre os demais domínios do filme. A empresa de Arturo só prospera por causa da intermediação escusa de Carlos junto à Volks (e depois Arturo instalará sua nova sede numa localização próxima da Willys, da General Motors, da Crysler etc); Ana consegue emprego como garota-propaganda para divulgar as peças de Arturo; Luciana conseguirá casar com Carlos porque ele está ganhando mais na empresa de Arturo. É à sombra do capital industrial estrangeiro, especificamente o automobilístico, que a economia nacional se organizará. As cenas na escola de inglês são um índice importante desse fenômeno. Nas duas vezes em que aparece, a sala de aula está cheia de homens engravatados e no quadro-negro lê-se: “English is the commercial language used in Brazil. We must learn english”. É uma frase que se impõe como lema para os novos tempos. Por isso Carlos e Luciana estão estudando. E esses “novos tempos” implicam uma série de conseqüências “modernizadoras” significativas, das quais o filme não se furta de expor algumas. São Paulo S/A é pródigo nas indicações de mudanças, mas não o faz de forma conformista e descritiva. Seu olhar é crítico e procura identificar pontos de tensão, ou seja, mostra que o processo não é tão pacífico.
a. Um mar de carros
A primeira dessas indicações é a prevalência dos automóveis. A indústria automobilística “se enquadrou no propósito de se criar uma ‘civilização do automóvel’, em detrimento da ampliação de meios de transporte coletivo para a grande massa. (...) Por outro lado, como as ferrovias foram na prática abandonadas, o Brasil se tornou cada vez mais dependente da extensão e conservação das rodovias e do uso dos derivados do petróleo, na área de transportes” . Os carros aparecem copiosamente no filme, desde a linha de montagem da Volks até o estacionamento no final . As ruas, em cenas ou planos autônomos, invariavelmente possuem grande fluxo de carros. Carlos possui um fusca, símbolo da industrialização, mas que é muito inferior ao Oldsmobile de Arturo, imponente com seu tamanho . Do mesmo modo, o Ministério do Trabalho faz fiscalização com um Bandeirante desengonçado. Carlos foge num Kharmann Ghia, e termina pegando, ironicamente, uma carona de volta num FNM (Fábrica Nacional de Motores, que faliria em meados dos anos 60). São muitos carros, e para acolhê-los foram realizados elevados investimentos em infra-estrutura viária. Não é à toa que, no filme, as estradas têm uma presença importante. Elas levam a todo lugar: à empresa de Arturo, que fica na Anchieta, junto com as grandes multinacionais; à casa de campo de Arturo; à represa Guarapiranga, quando Hilda vai confessar sua busca do amor ideal; e, finalmente, à fuga e ao retorno. Mesmo na cidade vão ocorrer modificações para abrir o Vale do Anhangabaú para que passem os carros . Aumentaram-se as estradas, mas privilegiou-se o transporte privado, abandonando-se o coletivo, como é refletido nas duas cenas nas quais vemos ônibus sempre abarrotados e revelando um sistema precário. O trem, por sua vez, ironicamente conduz Carlos e Ana ao asilo.
b. a tv chega aos lares
A televisão também é outro ponto importante que entra para a fatura do filme. No final da década de 50 ela é a grande novidade que começa a se estabelecer no Brasil . Torna-se, assim, o centro das atenções, espaço que não perderá desde então. Estará na maioria dos lares da classe média daquele período, geralmente no meio da sala, postada numa mesa como se estivesse num santuário . O filme reserva às cenas na casa de Luciana o tratamento desse tema. É isso que ocorre na cena em que Carlos e Luciana chegam depois do baile, na noite de domingo. A família de Luciana está na sala, reunida em volta da televisão, e sua mãe avisa que a janta está no forno para logo em seguida retornar para junto dos outros. Depois vemos o irmão de Luciana assistindo a um seriado americano (supostamente um western) em alto volume, interferindo no pedido de casamento. Conforme observa José Ramos Tinhorão, por volta de 1960, “o aparecimento do videoteipe reforçou a participação dos filmes cinematográficos na estruturação básica das programações das televisões, fazendo predominar os chamados enlatados, ou seja, os documentários - científicos, turísticos, educativos, de propaganda ideológica -, os seriados, os shows, etc, todos produzidos no estrangeiro” . A associação da televisão à família de Luciana serve inclusive para matizar os aspectos pequeno-burgueses a ela atribuídos. Num outro pólo, Helena, amiga de Ana, vem para São Paulo com a intenção de entrar na televisão (era apresentadora em Minas), uma área que era bastante promissora naquele período .
c. a prepotência do presente
Com a abertura econômica, a modernização tecnológica penetrará os interstícios da sociedade, e para onde quer que se vá, estarão lá suas marcas. Redutos da natureza, nem o campo nem a praia escapam do avanço de civilização, da “colonização” técnica. E assim como devem aprender inglês, as pessoas devem também se adequar às mudanças tecnológicas que transcendem a esfera produtiva e se estabelecem na vida doméstica. Nesse sentido, o filme procura montar algumas situações que têm a conotação clara de comentário tópico. A primeira cena ocorre na praia e é uma das mais emblemáticas. Carlos e Ana estão às margens de um rio. A areia, o silêncio e a posição dos dois conferem um efeito de “neutralização” da realidade, como um palco. Ana olha em volta e pergunta: - Carlos, o que é este lugar? - Era, hoje não é mais. - Carlos, o que era este lugar ? - Era um porto, um porto de areia. Ana, aproximando-se de um barco abandonado, pergunta novamente: - Os barcos, o que eram? - Os barcos não eram, os barcos eram batelões, os batelões eram para areia, a areia para o vidro. Hoje não tem mais vidro. Hoje não tem mais !!! Nesse instante surge um cão latindo. Ana assusta-se e temos um corte para o som de lanchas. O barulho estridente dos motores reintroduzem os personagens à realidade. A segunda cena é também com Ana. Ela e Carlos estão visitando sua mãe no asilo. Já é um dado significativo o fato de eles estarem indo ao asilo de trem, na periferia (São Miguel). A agudeza da cena se dá quando Ana se defronta com a mãe no asilo. Lá estão muitos outros que a câmera mostra de relance. Frente à frente, vemos a mãe de Ana distanciada por um efeito de grande angular que a “afasta”, diminuindo. Na banda sonora temos um som vago, quase o eco surdo num túnel, o que reforça a idéia de estranhamento e distância. Ana também é vista de uma grande angular que a distancia da mãe. Não há diálogos, apenas a entrega de um embrulho. Carlos presencia tudo com um certo desconforto. Finalmente, temos a cena na casa de Luciana, durante o pedido de casamento. Carlos, Luciana e o pai dela estão sentados no sofá e conversam em tom solene, são ouvidos conselhos e planos. O elevado som da televisão, no entanto, invade a cena e interrompe o diálogo. Nesses três casos podemos perceber uma certa incongruência que está dada entre dois termos opostos: o presente e o passado; o progresso e a tradição. Na primeira cena citada, os motores potentes das lanchas são o contraponto do presente ao arcaísmo dos batelões e do porto de areia abandonado. São coisas, inclusive, que foram suplantadas pela tecnologia mais avançada, ou seja, tornaram-se obsoletas. Na cena seguinte, do pedido de casamento, é a força do aparelho de TV que desrespeita um ritual antigo. Por fim, no asilo, o que se observa é a desautorização do velho, da tradição. De um lado a mãe, depositária do passado, que foi rejeitada, posta num asilo que sintomaticamente fica na periferia, longe. De outro lado a filha que está na cidade para progredir, para ganhar a vida e responder às necessidades do crescimento econômico. Em São Paulo “os tempos mudaram”, como afirma resignado o pai de Luciana. Envolvida pelo torvelinho da modernização nacional, dos “Cinco anos em cinco”, a cidade acelera seu ritmo de transformações e de erradicação do passado. A configuração urbana renova sua face, como bem ilustram algumas obras públicas que são mostradas de modo aleatório. Para o progresso importa o seguir em frente, não olhar para trás. A professora de inglês entra em cena para enfatizar isso, dizendo em voz alta para que os alunos repitam num aprendizado mecânico: “forget, loose...” . A nova realidade exige novos profissionais. Nesse sentido, Carlos segue na contracorrente. Quando ordenam para esquecer, ele rememora. Seu comportamento é arcaico, ingenuamente retrógrado. Carlos se nega a acompanhar o ritmo das coisas. Cantarola música brasileira (quando canta “A favela”, Luciana pergunta-lhe se não tinha algo mais novo, e ele diz: “Sou velho... não conheço nada de novo”) enquanto a moda são as vitrolas com rock’n roll e jazz. Acredita na indústria nacional e compra um Volkswagen, enquanto Arturo tem um Oldsmobile. Tanto a fuga como a volta são feitas em veículos nacionais, um Karmann Ghia e um FNM, sendo que esta última empresa viria a falir diante da concorrência com as multinacionais. Hilda, por sua vez, leva sua oposição ao extremo, como uma anti-capitalista romântica. Em seu apartamento não vemos televisão ou rádio, vemos livros em estantes, sobre a mesinha a câmera revela livros de poesia francesa (P. Valéry) e El Cid, junto com alguns compactos. É o nicho do intelectual. Sua busca do amor ideal é uma ruptura com o pragmatismo. No final, entretanto, os dois sucumbem. Hilda morre. Carlos acaba retornando ao presente, a São Paulo: “Recomeçar, Recomeçar, Recomeçar, mil vezes recomeçar”.
d. um certo capitalismo caseiro
Entre os personagens de São Paulo S/A, depois de Carlos é Arturo que merece uma atenção especial. Num país que se dinamiza através da entrada de capitais estrangeiros, Arturo é o empresário brasileiro que procura se inserir no processo e lucrar algo com ele. Seu objetivo será o de se integrar ao desenvolvimento dos mais diversos modos (lícitos ou ilícitos). A história do capitalismo brasileiro é formada por esse tipo de empresário, que não mede esforços, recorre às regalias e privilégios para conquistar espaço. Trata-se de um segmento empresarial que, segundo Fernando Henrique Cardoso, “reúne os industriais que, tendo conseguido ‘fazer a América’ ou tendo aplicado na indústria capitais ganhos na lavoura, transformaram-se de pequenos ou médios proprietários de fábricas em grandes industriais. Neste caso - que em geral corresponde ao de chefes-de-indústrias que dirigiam ‘empresas clânicas’ e se transformaram em homens-de-empresa - o progresso técnico e a garantia da rentabilidade crescente do capital são conseguidos através da manipulação de empréstimos e favores estatais, do trabalho árduo e da sonegação”(grifos meus) . Este é o caso de Arturo. Ele próprio auxilia na sua caracterização ao contar a história da migração de sua família. Vieram para o Brasil para enriquecer. E o “cálculo racional” que norteou esse tipo de imigrante, segundo Florestan Fernandes, “embora tivesse uma conexão capitalista específica e característica, só podia corresponder à racionalidade adaptativa das fases de instauração e de universalização de um novo regime econômico. Tal cálculo respondia à lógica da aventura , da cupidez e da audácia” . O que nos é dado conhecer das práticas e estratégias de Arturo ratificam essa assertiva sociológica. A prosperidade de sua fábrica ocorre justamente porque realiza negociações escusas (venda de peças com defeito) com Carlos. Ele também faz uso dos “empréstimos e favores estatais”. Sobre isso temos uma passagem bem clara, que ocorre quando Carlos indaga Arturo sobre a origem dos fundos para a instalação da nova sede. Arturo dirá, sem nenhum constrangimento: - Do mesmo modo que comprei o terreno, meu velho... Se vê que depois de há muito comigo você não aprendeu muita coisa em matéria de negócios. Prá que existe Banco do Brasil? E as boas amizades? (grifos meus) Desse discurso advêm duas considerações. Em primeiro lugar, revela-se o caráter personalista do modelo de gerenciamento de Arturo. Para ele tudo se legitima no percurso para o lucro desenfreado. E nesse caso valem os mecanismos informais de obtenção de vantagem, ou seja, as redes de influências pessoais, o suborno e qualquer outra estratégia afim são utilizadas no sentido da maximização dos lucros. Agirá, portanto, através de uma centralização empresarial típica dos capitães-da-indústria. A segunda consideração se refere ao papel desempenhado pelos bancos oficiais como instrumentos de apoio governamental . Eles é que possibilitavam linhas de crédito para financiar a expansão econômica. Basta observar, logo no início do filme, a panorâmica que apreende tanto o prédio do Banco do Brasil quanto o do Banespa, dois importantes bancos estatais. É o crédito proveniente deles que possibilitará a condição burguesa de Arturo, o emprego de Carlos e Ana, o casamento de Luciana. Nisso concordamos com Jean Claude Bernardet quando este afirma que “...o dinheiro tem um papel relevante. Não só o dinheiro está presente em filigrana o tempo todo, mas freqüentemente determina a situação das pessoas” . Além dos favores oficiais e dos mecanismos informais, outro dado de arcaísmo é o que se realiza no nível das relações trabalhistas e administrativas. A visão de Arturo é extremamente tradicionalista, marcada pelo personalismo. Assim, ele não vai abrir mão do “trabalho árduo e da sonegação”. É por isso que Carlos será obrigado a trabalhar no fim de semana (numa fala que consta no roteiro, mas ficou fora do filme, Carlos diria para Luciana: “Indústria familiar, minha cara, dá dinheiro mas é tudo na base do jeito...”); do mesmo modo, os trabalhadores mais desqualificados não terão registro em carteira e os equipamentos de proteção contra acidentes permanecem avariados. Soma-se a esse quadro o fato de que Arturo confunde as despesas da empresa com suas despesas privadas, não havendo, portanto, uma separação dos fundos. O único elemento da modernização, em curso no país, que Arturo incorpora é a publicidade. Trata-se, aqui, do manto cobrindo as chagas. Ana aparece numa foto, de maiô, empunhando uma engrenagem (que será veiculada pelas revistas gerenciais importantes do momento: Visão e O Mundo Industrial). Para compensar a sua forma arcaica de proceder, Arturo utiliza-se de uma outra face, esta sedutora . Ele sonega e trapaceia, mas a publicidade o redime. Esta é a característica da modernidade que se implantava.
A política à margem, mas nem tanto
Em pleno período cinemanovista, profundamente politizado , São Paulo S/A traz personagens que margeiam o tema. No caso do filme de Person o documentário é envolvido pela ficção, inserindo-se diegeticamente nela. Em termos concretos, no entanto, a política passa distante, no máximo por uma manifestação de moral e civismo, que no roteiro original previa uma passeata de greve bancária . Carlos presencia a manifestação com indiferença, está naquele local apenas para encontrar-se com Ana. Entregam-lhe um panfleto, ele o pega mas não presta muita atenção. É curioso que mesmo a campanha presidencial de 1960, que estaria dentro do tempo diegético do filme (57-61) não é mencionada no filme. Para nenhum dos personagens interessa saber o que ocorre fora de suas vidas imediatas. O que está em jogo é a industrialização e como cada personagem se insere nela dentro dos limites de sua ação concreta (familiar, profissional etc), ou seja, a preocupação privada do indivíduo comum é o que importa. É por isso que a manifestação é um acidente de percurso do qual Carlos desvia sem dar a mínima atenção. Não faz parte de seu mundo assim como dos demais. Ele é apenas um rapaz em busca de melhores condições. Tanto é que sua vida é namorar, passear e ir à restaurantes. Seu diálogo se centra nas coisas imediatas da vida, nos limites da esfera privada. Hilda, por ser dotada de características intelectuais, deveria ser consciente da realidade política, mas não o é. Seu comportamento é distanciado, alienado"; fala da opressão da cidade, porém num sentido abstrato. Arturo, por sua vez, fala do progresso econômico de São Paulo, do Banco do Brasil etc. Ou seja, elementos concretos, ligados diretamente a sua vida de negócios. Diferentemente do que ocorre em um filme como Deus e o Diabo na Terra do Sol, para citar um único exemplo, em São Paulo S/A a questão política é posta em campo no movimento formal do filme, na sua montagem. Nenhum dos personagens é porta-voz de um discurso crítico diretamente político, com alvo definido no palco histórico do momento.
Epílogo
Pelo que foi possível ver, São Paulo S/A é um filme que se erige em torno de uma experiência bastante avançada dentro da história do cinema brasileiro. Primeiro, porque aborda de maneira inédita a cidade, pondo em cena temas candentes no período e com uma solução estética eivada de modernidade. Suas influências são bem marcadas, visíveis. Como já dissemos, é um filme de cinéfilo, mas nem por isso deixa de ter seu vigor. Na seara do cinema brasileiro poucos diretores foram por esse caminho. Antes dele ousamos afirmar que nenhum conseguiu tal feito em relação ao registro dos dramas urbanos. Seu filme surge como um divisor de águas. Depois dele o cinema começa a conferir um olhar mais sensível ao fenômeno da cidade, particularmente de São Paulo. Exemplos não faltam: O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla), O quarto (Rubem Biáfora), A margem (Osualdo Candeias), entre tantos outros. Cada um desses filmes foi trazendo uma leitura muito singular e crítica da vida cotidiana nos centros urbanos. Uma certa perturbação se imiscui nas obras, fazendo aflorar uma série de personagens problemáticos (na trilha de Carlos), de marginais e proscritos de todo o tipo. O que é interessante perceber é que São Paulo adquire um estatuto estruturador dos filmes e não se reduz mais a um mero “pano de fundo”. Procuramos indicar ao longo de nossa análise que São Paulo S/A está totalmente imbricado nessa forma de elaboração estética. E nesse sentido sua contribuição permanece sendo ímpar.